O papai pariu

Maria Clara Guedes Cardoso, nascida às 2h29, com 3.560 kg, aos vinte e sete dias do mês de fevereiro, de 2017. Assim está na certidão de nascimento: os dados são precisos, mas frios. Tem muito sentimento, experiência, choro e sorrisos por trás dessas palavras escritas sobre a nobreza do papel moeda do seu registro. Compartilho com vocês minha experiência da chegada da nossa princesa; é a versão do pai, e vem com alguns dias de atraso: coisas de pai, sabe como é, né?!

Antes de irmos para o hospital a preparação para o parto foi feita em casa com o auxílio de uma doula. Foto: Arquivo pessoal

É domingo, dia 26. Amanheci assustado, chacoalhado. Eram duas da manhã. A Simone diz ter algumas dores.

– Bora para o hospital, disse no impulso, quando na verdade queria dormir mais um pouco, isso sim.

– Acho que não é nada, ela falou.

– Ufa! Mentalizei em silêncio, puxando a coberta.

As bagagens estavam arrumadas. Tudo estava pronto para a chegada da nossa segunda filha. Por isso, qualquer hora era hora. Na verdade, essa já era a resposta padrão que dávamos, quando indagávamos sobre a chegada dela. Afinal, durante a gestação cogitamos ter uma bebê prematura, por causa de algumas incisuras nas artérias uterinas, identificadas após ultrassom com doppler.

Apesar do nome complicado do diagnóstico, sei que isso poderia dificultar o crescimento e o ganho de peso da nossa garotinha, lá na barriga da mamãe. Deus é bom e fiel; tudo foi perfeito, e como já antecipei acima, a garotinha veio enorme, como o pai, e com lábios exuberantes, como os da mãe.

O dia amanheceu. As contrações estavam ritmando. Entre cinco e 10 minutos. Nessa gravidez o monitoramento estava mais moderno: a mamãe tinha pelo menos uns quatro aplicativos para marcar cada detalhe, desde a fecundação até as contrações. O dia seguiu, ela assistiu televisão e, desde então, comecei a ser o cinegrafista particular da mamãe. Todos os passos eram monitorados e filmados.

Não entendi o motivo de ser barrado nas filmagens do banheiro, da maquiagem e da comida. Tudo bem; fingi que não era comigo, e continuei registrando todos os passos: em algum dia, não muito distante desse que você está lendo, vou editar os vídeos dessa história, que começa a ser roteirizada nesse relato de parto, o primeiro que escrevo em minha vida.

O dia chegou em sua metade. As contrações eram constantes, e iam se intensificando. Monitorava, por várias vezes com a câmera e celular, os passos da mamãe. Precisávamos de ajuda com nosso primogênito, de três anos. Moramos sozinhos em Cuiabá, os parentes mais próximos estão a cerca de 200 quilômetros daqui.

Porém, como já disse, Deus é pai, e nos deu amigos que são grandes tesouros. O Miguel foi para a casa dos padrinhos da Maria Clara, nossos compadres: Daniel e Pâmella. No começo, com a notícia, antes de sair de casa, ele empolgou-se. Afinal, a Ana Valentina, filha do casal,  é sua amiga, desde os tempos que estavam nas barrigas de suas respectivas mães. Marcamos de nos encontrar no Hospital Santa Rosa, local que retornaríamos na madrugada seguinte, às pressas.

Fizemos o trajeto até à unidade hospitalar. Debaixo de árvores, no disputado estacionamento gratuito ao redor do hospital, entregamos o Miguel a eles. Foi chorando, e deixou a mãe chorosa também. Afinal, era a primeira vez que ele poderia dormir fora de casa, ficar longe do grude da mãe. E assim o foi, comportadíssimo ficou um dia longe, sob os cuidados do nosso casal de amigos, e companhia inseparável da Ana Valentina, a Tina.

Como estava próximo ao hospital, a Simone foi avaliada para saber como estávamos. Monitoramento por desencargo. É curioso ver a reação das pessoas ao saber o tempo da gestação, e ver nossa cara de tranquilidade. Não sou expert no assunto, mas a minha convivência e experiência dos últimos quatro anos têm me feito notar as expressões mais absurdas e desconcertadas das pessoas, ao se deparar com uma mulher que decidiu esperar, de forma natural, o nascimento de uma criança. Isso se repete em todo o meio, inclusive entre profissionais da saúde.

Lembro-me dos olhares curiosos e preocupados, até bem-intencionados, na recepção do hospital, em pleno domingo de carnaval, de um casal de jovens, sendo que a mulher chegava a encolher-se de dor, na cadeira, durante as contrações, na recepção. Após a espera, fomos atendidos. Fizemos o que já era de praxe nos últimos meses: esperar. Não havia dilatação necessária, e nem as contrações suficientes para o parto. A bebê estava bem!

Retornamos para casa. Mas antes, a gestante, já com a “barriga baixa”, e com uma blusinha que valorizava o barrigão foi ao mercado. Os olhares não paravam. As filmagens também não.

Quando a hora está chegando caminhar pelo condomínio pode ser uma ótima opção. Foto: Arquivo pessoal

Chegamos em casa. Celular na mão monitorando as contrações. Na trilha sonora mental, a frase poética da cantora Ludmila, que afirmava que era hoje! A mamãe passou a dividir a preocupação com o Miguel, que estava longe de casa – e por sinal se divertindo muito.

O relógio marcava 16h20. Pela situação, era possível ir a Santa Missa. Seguimos para a Catedral Basílica Bom Jesus de Cuiabá. Mas sempre de olho nas contrações, afinal não poderia senti-las, mas estava ali do lado, pertinho. Até então a enfermeira e doula, Geovana Hagata, que iria nos acompanhar do dia do parto, não havia sido informada das emoções que estávamos vivendo naquele domingo.

A encontramos na igreja. Durante a liturgia da palavra, a Simone resolve ir ao banheiro. Passou o tempo que julguei normal, e resolvi ir ver o que estava acontecendo. Olho rapidamente para a fileira de banco a frente, e vejo que nem a doula está mais lá. Eita! Na minha cabeça de jornalista já imaginava a manchete: grávida dá à luz em banheiro da Catedral, em Cuiabá.

Menos, menos! Não era tudo isso. Ambas estavam conversando, Geovana e Simone. A mamãe, por sua vez, chorava na porta do sanitário. Não pelas dores, contrações, emoções ou ansiedade pela filha que estava para nascer, mas sim pelo filho que havia completado três anos, há exatos 12 dias, e que estava, temporariamente, sob os cuidados de outras pessoas.

Assistimos a celebração até o final, sem fortes emoções. As contrações continuavam, apesar da Simone tentar fazer cara de tranquilidade quando elas vinham com mais intensidade e frequência. Na boa, não dava para disfarçar. Pouco podia fazer, a não ser compadecer da dor, e dar a mão para ser apertada. Também fazia algumas piadas. O bom humor é necessário. Depois descobri que nem sempre é eficaz, em todos os momentos. Já te conto.

Voltamos para casa. Vem Netflix. Vem contração.

Começamos uma pequena série de exercícios para acelerar o trabalho de parto. Com a bola de pilates, a mamãe tentava amenizar a dor. Fazia massagem, mas parecia que tudo não adiantava.

– Doula, vem prá cá. Preciso da sua ajuda. Acho que vai nascer, disse ao telefone.

A Geovana chegou, e ajudou nas massagens. Já eram mais de 22h, e elas resolveram caminhar pelo condomínio. A doula e agora personal training fez a Simone caminhar em alguns minutos o que não havia percorrido na gravidez inteira. Era engraçado quando a contração vinha. No meio da rua, onde estivessem, a mamãe agachava e curtia aquele momento de pressão, sob os olhares curiosos das pessoas que passavam por ali.

Caminhada. Massagem. Banho quente.

– Doula, sabe tirar foto? Faz assim: foco, zoom e clique! E foi assim que a Geovana passou a acumular mais uma função naquela noite. Obrigado.

Nos primeiros minutos de segunda-feira, a mamãe afirmou que não aguentava mais. Vou tentar te transportar para essa cena: repita a palavra “mais” de forma nasal, com temperamento nervoso e de cansaço; adicione ênfase na vogal “a”. Foi mais ou menos assim.

Na minha cabeça de jornalista já imaginava a manchete: grávida dá à luz em banheiro da Catedral, em Cuiabá.

Rumamos para o hospital. Malas no carro. A toda velocidade. A situação parecia que ia se desenrolar. Não sai da minha cabeça as histórias de que o segundo filho escorrega igual quiabo. Essas constatações fizeram-me consultar o doutor Google, para antecipar minhas ações diante de uma situação semelhante. Felizmente não precisei usar minhas habilidades médicas adquiridas em vídeos no You Tube, risos!

Triagem. Espanto das atendentes e vamos para a burocracia. Que saco! Ela já havia passado por aquilo há horas atrás. Parece que não havia nada no tal do bendito sistema falho de comunicação e cadastro.

Tudo encaminhado. Entramos em contato com o obstetra, Dr. Victor, que logo foi para o hospital. Já estava no quarto, onde rapidamente foi montada uma sala de parto. A noite estava fértil aquele dia: pelo menos outras três crianças fizeram seus pais passar a segunda de carnaval no leito médico.

Mais burocracia. Minha esposa está prestes a ter bebê, e sou interpelado a preencher um cadastro infinito. Passar uma quantidade imensa de informações. Assinei meu nome pelo menos umas 15 vezes, em vias que não acabavam mais. Depois da minha quinta rubrica, substitui a assinatura por uns rabiscos. Reinteiro que esse procedimento é tão inconveniente, pelo momento e circunstância, e ao mesmo tempo tão incômodo, que o que mais queria era acompanhar minha esposa, e não perder tanto tempo com procedimentos burocráticos.

Finalmente livre dos papeis. Mamãe e doula caminhavam pelos corredores. A bola de massagem já não era o acessório mais adequado, já que exercia pressão na barriga, ao sentar. Chegou a banqueta. Deu 1h20 da madruga a Simone sentou-se, e começou a fazer força. As fotos desse momento não mentem: foram muitas caretas. Elas não registram a intensidade da dor: pelas expressões imortalizadas, parece que eram fortinhas, risos!

Sentei-me atrás dela. De forma que a mamãe encaixou suas costas em minhas pernas. Com nossas mãos entrelaçadas, meus dedos passaram a ser esmagados, com a força com que eram segurados. Gritos. Gemidos. Sorrisos.

Entre choros e gemidos ela nasceu

Fiz brevemente uma retrospectiva da chegada do Miguel (continue lendo, já te conto como a Maria Clara chegou).

Voltando. No nascimento do Miguel, em outro hospital, a Simone recebeu medicação para induzir o parto. Ela o teve no centro cirúrgico, logo que chegamos à unidade. Assim que o tive em meus braços, logo ambos foram levados para o quarto, e fiquei do lado de fora, por umas duas horas, sem ter nenhum tipo de notícia. Ah, o parto também foi com o Dr. Victor, o melhor!

Na chegada da Maria Clara tudo foi mais diferente. Intenso. Participativo. Suado. Me atrevi a dizer que o papai pariu, porque tive essa sensação durante os minutos intensos de força que fizemos juntos. Sentados da banqueta, ouvi, no pé do ouvido, os gemidos da mamãe. Sim, ela também deu chilique. Deu piti. Queria arrancar a pulseira do braço. Estava prestes a desistir. Pediu cesárea. Pediu medicamento, indução e tudo que segundo ela, ela tinha direito. Risos infinitos!

Antes das 2h, as forças para o período expulsivo não foram tão eficazes. Digo isso porque o tampão não havia saído e a bolsa estava intacta. Essas informações foram repassadas após avaliação do Dr. Victor, que sugeriu uma pequena intervenção.

– Simone, você já está muito cansada. Sugiro rompermos a bolsa, para antecipar o procedimento, disse o médico.

A mamãe subiu na cama. O médico realizou o procedimento.

Mecônio. Mecônio e mecônio. A pequena bacia de metal, que depois, desastradamente tropecei nela e quase sujei todo o quarto, ficou parcialmente cheia da primeira matéria fecal da Maria Clara. Pelas expressões faciais que vi ao redor de mim, a situação poderia ser mais preocupante.

A barriga da Simone desceu imediatamente. O Dr. Victor passou a monitorar constantemente os batimentos cardíacos da Maria Clara. A Simone perdeu o foco de fazer forças, nas contrações, e ficou tentando acompanhar os números dos batimentos, que diminuíam no visor do aparelho. Depois da bronca médica, ela voltou a se concentrar.

A pediatra plantonista havia sido “liberada” pelo médico momentos antes de decidir romper a bolsa, manualmente. Ela foi atender uma daquelas crianças que disse que também estava nascendo naquele dia e precisavam mais dela em uma cirurgia que em um parto normal. Assim que a médica retornou, e foi informada sobre a presença de mecônio, em abundância, lembro da repetição das palavras que disse.

– Tinto! Tinto. Tinto, afirmou ela referindo-se a cor e textura do mecônio, que pode ser prejudicial ao bebê, caso ele ingira este líquido durante o parto.

Retornamos para a banqueta. O clima estava mais sério. O bom humor ficou de lado. De minha parte pelo cansaço. Da parte dos profissionais pelo fato de que poderíamos ter um momento delicado.

Nossa segunda filha nasceu em plena madrugada de uma segunda-feira de carnaval. Foto: arquivo pessoal

Foram menos de seis minutos de força até o primeiro choro da Maria Clara. Nesse tempo o Dr. Victor continuava monitorando os batimentos, e pediu ainda para a enfermeira um tal de Kiwi – a internet me disse que é um extrator obstétrico à vácuo, substituto do fórceps. Quando o ouvi pedindo esse aparelho fiquei um pouco ressabiado. Confiante em Deus, logo deixei a preocupação de lado.

Esses últimos minutos foram de concentração e muita força. Estava completamente suado. O ar condicionado havia sido desligado, para manter a temperatura ambiente. Além disso, o berço aquecido, montado ao lado, elevava a temperatura.

– Vamos lá, Simone. Faça a força correta. Não desiste, não. Força! Dizia o Dr. Victor.

– Não perca o controle, respira para oxigenar a bebê. Afirmava.

A Simone concentrava. Obedecia e fazia força. Até, que:

– Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! A interjeição encheu as mãos do médico. Estava lá, nossa princesa. Toda suja de mecônio e líquidos correspondentes do processo do nascimento. Duas eram a circulares de cordão, ou seja, o cordão umbilical havia dado duas voltas no pescoço da Maria Clara – tem muito médico que ao constatar essa cena, no ultrassom, diz que por esse motivo a mulher não pode ter parto normal. Não sou médico, mas como pai e testemunha do nascimento da minha filha digo uma coisa: é mentira. É mito!

Imediatamente, assim que nasceu, às 2h29, ela foi entregue nas mãos da mamãe. Em seguida, as duas choraram. Que momento incrível:

– Nasceu, mamãe. Nasceu, mãezinha, disse emocionada a Simone.

Sentado, atrás, na banqueta, mantive as duas abraçadas, com a sensação de que aquele gesto se repetirá até os últimos dias da minha vida. Toda roxinha, logo a Maria Clara ficou rosinha e procurou o peito. Mamou!

A doula, personal e agora também fotógrafa, registrou o momento. Em todas as imagens as duas choravam, uma amarela e pálida, a outra meio roxa e faminta, e apenas eu sorrindo, risos.

Em seguida, com a tesoura nas mãos, cortei o cordão. Separei a ligação entre as duas, para que também fizesse parte desse elo. O choro, que me lembrou o do Miguel, parecia no mesmo tom, continuava.

A mãe apagou. Ao expelir a placenta, depois de vários momentos de dor e esforço constante, a Simone caiu fraca em meus braços. A criança foi retirada do seu colo braços, e com a ajuda do médico colocamos a Simone na cama. Cinco minutos depois, a mamãe acordou, aparentemente um pouco desorientada, e imediatamente indagou sobre a sua filha que acabava de parir – o amor de mãe é sensacional.

Graças ao nosso bom e amado Deus a chegada da nossa princesa ocorreu tudo bem. Os profissionais que nos acompanharam foram incríveis, e extremamente competentes. A mamãe deu show de esforço, amor e dedicação à nova vida gerada.

“Com a tesoura nas mãos, cortei o cordão. Separei a ligação entre as duas, para que também fizesse parte desse elo. Foto: arquivo pessoal

Apesar de não ter gestado e não poder amamentar, sinto que também pari. Afinal, é uma dádiva poder participar em todos os momentos dessa história que está apenas começando.

Aos que me cobraram agilidade na escrita desse relato, espero que esteja perdoado após a leitura. Afinal, foram quase três mil palavras. Inclusive, termino de escrevê-lo justamente na mesma hora e dia que, há duas semanas, íamos ao hospital, para o nascimento da nossa princesa, que nesse momento dorme, como um anjo, em seu quarto.

Ah, eu também contei essa história em vídeo, em um documentário super legal que fiz. Visite o próximo post e assista.

Eduardo Cardoso é jornalista, marido da Simone, uma mãe guerreira e exemplar de duas crianças: Miguel e Maria Clara.

Texto originalmente escrito em 26/02/2017

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